sexta-feira, 14 de junho de 2013

“Podem tirar-nos tudo, menos a esperança fiel.” Entrevista com Pedro Casaldáliga

Aos seus 81 anos, o bispo emérito da diocese de São Félix do Araguaia é um dos mais destacados representantes da Teologia da Libertação e se converteu em uma referência para a esquerda latino-americana. Há quatro décadas, desde que chegou ao Brasil para ficar, seu trabalho em defesa dos direitos dos povos indígenas e dos grupos sociais mais oprimidos, assim como seu apoio aos movimentos brasileiros de agricultores sem terra e à revolução sandinista na Nicarágua nos anos 80 fazem com que Pedro Casaldáliga seja parte fundamental da memória viva da luta pela dignidade e pela libertação dos povos na América Latina.

A meados do mês de agosto, Pedro Casaldáliga recebia um grupo de ativistas sociais do Estado espanhol em sua humilde casa de São Félix, no estado brasileiro do Mato Grosso, para refletir que "a mundialização nos deu a oportunidade de reconhecer que somos uma só humanidade. Somos todos iguais, devemos ser assim, em dignidade e em oportunidades". Assim se dava início a uma conversa em que se tratou desde a situação política do Brasil até as perspectivas atuais da Teologia da Libertação, passando pelo modelo de consumo ou os desafios da esquerda latino-americana.

A reportagem é de Pedro Ramiro, María González Reyes e Luis González Reyes, publicada na revista Pueblos, nº 39, de setembro de 2009, e no sítio Religión Digital, 08-10-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis a entrevista.

A partir da perspectiva que o fato de continuar exercendo há muitos anos o compromisso com as pessoas mais desfavorecidas do planeta oferece, que significado tem para o senhor a solidariedade hoje?

A pergunta que se faz a partir do Primeiro Mundo é: o que nós podemos fazer? Justamente renunciar, por fim, que já é pedir muito, ao privilégio de ser Primeiro Mundo. Renunciar a essa condição excepcional de uma mínima parte da Humanidade, se a compararmos com a imensa maioria de todo o Terceiro Mundo. Estamos tentando destacar sempre que a solidariedade deixou de ser aquela solidariedade paternalista, de enviar roupas, remédios, certos recursos... Deve ser uma solidariedade que vai e que vem, muito mais concreta e muito mais exigente: damos e recebemos, para que também a própria solidariedade, além de alimentar pessoas e curar doenças, facilite e estimule a vivência da própria cultura. Porque nós ajudamos pessoas que têm uma cultura, que não são simplesmente um estômago e algumas veias, mas que são povos. Por isso, temos que procurar que a solidariedade seja constante, consciente, autocrítica, local e global: de ida e de volta.

Quando o senhor se encontrou com Fidel Castro, há 20 anos, ele afirmou que "a Teologia da Libertação ajuda na transformação da América Latina muito mais do que milhões de livros sobre o marxismo". Em que se baseia atualmente a Teologia da Libertação?

Hoje em dia, há diferentes teologias da libertação. O que se fez foi incorporar mais explicitamente temas, setores da sociedade, da vida, que antes não eram tão considerados. Foram surgindo as questões associadas aos indígenas, às mulheres, à ecologia, às crianças de rua... Agora, trata-se de uma teologia enriquecida pelas reivindicações desses grupos emergentes, e por isso a Teologia da Libertação já é muito plural em seus objetivos, sempre dentro da reivindicação da libertação. Quando pedimos libertação para o povo negro, pedimos que ele possa se sentir com orgulho negro e que não lhe seha privada a cátedra, a função pública, o governo, que não haja a segregação que ainda existe. Veja que, quando eu vim para a América Latina, há 41 anos, os negros, em sua imensa maioria, não se reconheciam como tais. Inclusive, alisavam o cabelo para que não parecesse cabelo de negro. Agora, estão recuperando seu orgulho, sua identidade. Algo parecido ocorreu com a população indígena. Quando eu cheguei ao Brasil, dizia-se que havia 150 mil índios, enquanto que hoje há um milhão. Nesta região, por exemplo, os indígenas tapirapé reconquistaram seu território, os karajá reconquistaram também uma parte de seus territórios, os xavante também... E tudo isso tem o espírito da Teologia da Libertação.

Uma das críticas que é feita à Teologia da Libertação por parte dos conservadores é de que se trata de uma teologia muito materialista, que se preocupa muito com interesses materiais, de necessidades físicas e esquece o espírito, a oração. Diante disso, eu reivindicaria três ou quatro traços que seriam indispensáveis na Igreja de Cristo: o primeiro, a opção pelos pobres; o segundo, conjugar fé e vida; o terceiro, a Bíblia nas mãos do povo; quarto, a solidariedade autenticamente fraterna.

O que permitiu que ela vingasse na América Latina?

Na América Latina, a Teologia da Libertação se desenvolveu em um momento muito oportuno: acabava de acontecer o Concílio Vaticano II, no ano de 1968, quando eu cheguei aqui – corriam ventos de mudança, as ditaduras militares tinham lugar, pelo qual o contexto foi propício para plantar pé e jogar-se à libertação. Além disso, há na América Latina uma certa unidade de continente. É o único continente que pode se chamar de pátria grande: Nossa América, como diziam os libertadores. Isso facilitou que surgisse uma teologia caracteristicamente latino-americana.

Lembro sempre como as perseguições, os exílios, as torturas, os mártires conjugaram melhor toda a realidade latino-americana. Aqui no Brasil, às vezes, sentíamos que estávamos um pouco distantes da América Latina hispano-falante: um país muito grande, com outro idioma... Mas depois de todas essas ditaduras militares, quando se misturaram os cantos e o sangue, a América Latina é mais ela, e é ela e o Caribe. Isso sim, eu prefiro a expressão Nossa América, porque os libertadores usavam mais essa denominação: Bolívar, Martí, Sandino, Fidel...

Na Agenda Latino-americana que vocês elaboram a cada ano, que serve de trabalho para muitos ativistas do continente, vocês colocaram em 2009 o título "Para um socialismo novo". O que quer dizer esse socialismo novo?

Quem é que sabe? (risos). Se poderia dizer também esquerda, ou socialismo, mas em todo caso existem umas quantas exigências indispensáveis: primeiro, não se pode ter o lucro como objetivo; segundo, é preciso ter uma certa igualdade, níveis muito igualitários, por exemplo, nos salários de um ministro ou de um agricultor; é preciso reivindicar um intercâmbio de países de igual para igual; e finalmente não se pode aceitar que o capital se faça dono do trabalho, da economia e da própria democracia.
Como estamos vendo com o caso de Honduras, os tempos dos golpes de Estado na América Latina podem voltar?
Quem sabe... Pelo menos, na Nicarágua e no El Salvador, já não poderá haver o que houve: haverá injustiças, haverá situações complicadas, mas uma revolução muito popular não se perde por completo.
Isso sim, o fato de que um país possa ser massacrado constantemente e que não haja ninguém que possa intervir nisso dá prova de que a Humanidade está mal. O socialismo não pode aceitar a ideia do colonialismo, do imperialismo. Nesse sentido, devemos gratidão a Cuba, porque, com todos os seus pecados e seus excessos, o fato de contestar obstinadamente o império é um grande serviço para a América Latina e para o mundo. Nesse sentido, uma política mundializada poderia supor uma oportunidade global.
O senhor também vem batendo pé no problema do consumismo.

Até agora, o consumismo tem sido visto como um excesso de vaidades, que é preciso sim ter 40 pares de sapatos, duas televisões etc. Mas isso é muito mais sério: consomem-se direitos, consomem-se necessidades. Se existem 20% de pessoas e famílias que estão na situação de estar bem, que vivem na civilização do bem-estar, há 80% que não têm o fundamental. O consumismo é capitalista, e todo o ruim que o capitalismo tem o consumismo também tem. Se você comparar o que acontece quando há um terremoto no Japão e quando ocorre em Honduras, vê que, em um lugar, morrem três pessoas e no outro, duas mil. Os países do Primeiro Mundo permitem-se ir fazendo, e atrás de nós, dizem, o dilúvio. Porque o primeiro que se olha não é o mundo, é a própria casa.

Então, onde fica a política?

Só se pode resolver o problema se há, de forma simultânea, políticas oficiais e políticas domésticas, grupais, partidárias, de associações, ONGs. Como está se dizendo muito agora, é preciso trabalhar local e globalmente. É preciso dar mais valor para a política. É preciso se meter na política, é preciso assumir a vocação política. Senão, ficamos cantando canções de protesto. A política foi desmoralizada, foi ficando nas mãos de pessoas sem consciência social nem responsabilidade. Tanto os partidos quanto os sindicatos causaram muitas decepções, mas continuam sendo válidos, mesmo que já não sejam tão hegemônicos, porque também há muitos movimentos sociais e ONGs que são muito valiosos.

As melhores ONGs são as muito politizadas: cuidam de ajudar estimulando, ajudar propiciando a ação e a formação. Deveríamos pedir que as ONGs fizessem um exame de consciência política. Porque estão ajudando, sim, mas e estruturalmente? A Igreja católica sempre fez caridade, mas, se não nos metermos nas estruturas, continuaremos com algumas que são nefastas.

Como avalia o papel dos movimentos antiglobalização, os encontros do Fórum Social Mundial e as organizações que defendem que "outro mundo é possível"?

Essa consciência mundializada nos ajuda a compreender que devemos transformar o mundo. Não vale cuidar só a própria casa e o próprio país. A utopia se torna mais possível, porque já é uma utopia com visão política, de solidariedade, com atitudes concretas. Anos atrás, quem poderia pedir um governo mundial? Hoje, falar disso já não é tão utópico. A utopia é filha da esperança. E a esperança é o DNA da raça humana. Podem tirar-nos tudo, menos a esperança fiel, como digo em um poema. Pois bem, deve ser uma esperança confiável, ativa, justificável e atuante. Por isso, a Teologia da Libertação insistiu tanto na práxis: se dizemos que Deus é amor, é preciso praticá-los; se é vida, é preciso potencializar a vida. A religião não é práxis, diziam-nos, é fé. Mas a fé sem práxis é uma quimera e também um sarcasmo. Teoricamente, a coisa é clara. Agora, na prática, vamos ver...

Fonte: RedeCelebra 10/10/2009. 

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